Como inventar a democracia do amanhã face ao desafio da farsa democrática
Samir Amin
2012-03-03, Edição 41
http://www.pambazuka.org/pt/category/features/80404
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O sufrágio universal é uma conquista recente, desencadeada pelas lutas dos trabalhadores no século XIX em alguns países europeus (a Inglaterra, a França, os Países Baixos e a Bélgica) sendo depois gradualmente estendida ao mundo inteiro. Hoje se afirma praticamente por toda a parte do planeta que a reivindicação do poder supremo delegada a uma assembleia eleita corretamente sobre uma base pluripartite – seja essa assembleia legislativa ou constitucional conforme as circunstâncias – define a aspiração democrática e, acrescento, assegura essa pretendida realização.Até Marx colocara grandes esperanças nesse sufrágio universal como “possível caminho pacífico rumo ao socialismo”. Eu escrevi que, neste ponto, as expectativas de Marx foram desmentidas pela História. (cf. Marx e a democracia).
Creio que a razão dessa falha da democracia eleitoral não é difícil de desvendar: até o dia de hoje todas as sociedades são fundadas sobre um sistema de dupla exploração do trabalho (quaisquer que sejam as formas) e de concentração do poder do Estado em benefício da classe dirigente. Essa realidade fundamental produz uma relativa “despolitização/desculturalização” dos segmentos mais amplos da sociedade. E essa produção, amplamente concebida e colocada em funcionamento para cumprir a função sistematicamente esperada dela, é simultaneamente a condição de reprodução do sistema, sem [o risco de] mudanças “que ele não possa controlar e absorver, sem abalar a condição de sua estabilidade. Isso é o que se define como “o país profundo”, ou seja, o país profundamente adormecido. Nessas condições a eleição por sufrágio universal é garantia da vitória do conservadorismo (um dia reformador).
Assim se explica por que jamais na História houve mudança produzida por esse modo de gestão fundamentada sobre o “consenso” (o de não mudar). Todas as transformações portadoras de padrões transformadores sempre surgiram como produto de lutas conduzidas por aqueles que, em termos eleitorais, podem aparecer como “minorias”. Sem a iniciativa de tais minorias, elemento motor da sociedade, não há transformação possível. As lutas em questão, deflagradas conforme algum padrão, sempre terminam – quando as alternativas que elas propõem são clara e corretamente definidas – por constituir as “maiorias” (silenciosas no início do processo), pois de fato elas são em seguida endossadas pelo sufrágio universal que vem após – não antes – a vitória.
No nosso mundo contemporâneo o “consenso” (cujo sufrágio universal define as fronteiras) é mais conservador do que nunca. Nos centros do sistema mundial esse consenso se mostra pró-imperialista. Isso não no sentido de que implique necessariamente no ódio ou no desprezo de outros povos, suas vítimas, porém, num sentido mais banal, isso significa que a permanência da punção da renda imperialista é aceita por que ela representa a condição de reprodução da sociedade em seu conjunto, a garantia de sua “opulência” fazendo contraste com a miséria dos outros. Nas nações periféricas as respostas dos povos ao desafio (o da pauperização produzida pelo desenvolvimento da acumulação capitalista/imperialista) permanecem confusas, no sentido de que misturam-se sempre com uma dose de ilusão nostálgica fatal. Nessas condições o recurso à “eleição” sempre é concebido pelos poderes dominantes como meio par excellence de deter o movimento, isto é, de pôr um termo no potencial de radicalização das lutas. Elections, piège à cons (eleições, armadilhas para conspirações) afirmavam alguns em 19689 após confirmação pelos fatos. Em suma, uma assembleia eleita hoje na Tunísia e no Egito para acabar com a “desordem” estabiliza uma situação. Cria-se o paradoxo de mudar tudo para nada mudar.
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